Irmãs claretianas atuam na Península de Zamboanga, no sul das Filipinas, região de perseguição aos cristãos
“Os cristãos são minorias nessa região e são perseguidos, de modo especial missionários estrangeiros, ou de congregações estrangeiras, visando um retorno econômico. Então, não é nem questão de fé. Só vivendo lá eu entendi.” Irmã Dulcinéa Ribeiro de Almeida, supervisora geral das claretianas em Londrina, viveu por oito anos nas Filipinas, de 2002 a 2010. O país é de maioria cristã (90%), porém apresenta uma região ao sul onde os muçulmanos rebeldes são maioria e perseguem os cristãos como forma de mostrar força. Em entrevista ao JC, irmã Dulcinéa conta sua experiência e o que mantém os missionários no trabalho, mesmo em situação de tensão e perigo constantes.
Presença das claretianas nas Filipinas
A comunidade das claretianas está presente nas Filipinas há 25 anos. É um país formado por ilhas e cada uma tinha uma religião. Quando o país se unificou, unificou-se como cristão. É considerado um país de maioria cristã. Mas o sul do país tem mulçumanos fundamentalistas. A nossa comunidade está na Península de Zamboanga. Nessa parte, os muçulmanos nunca aceitaram pertencer a um país denominado católico. Eles querem a independência, porque as raízes deles são muçulmanas. Então,mesmo sendo de maioria católica, no sul é difícil continuar. Nesses conflitos existem perseguições, sequestros frequentes, inclusive padres claretianos, sobretudo estrangeiros. Os cristãos são minorias nessa região sul e são perseguidos, de modo especial missionários estrangeiros, ou missionários de uma congregação estrangeira. Visando um retorno econômico. Então não é nem questão de fé. Só vivendo lá eu entendi. Não é uma perseguição pela fé, mas política, porque são rebeldes.
Estrangeiros perseguidos
As irmãs vivem uma realidade vigiada. Por exemplo, ali onde a gente está não temos mais a comunidade permanente, porque as jovens filipinas são ainda estudantes, não poderiam permanecer sozinhas, e as irmãs mais velhas, por serem estrangeiras, eram mais perseguidas. A embaixada, os países não queriam que a gente permanecesse lá, porque o sequestro de uma missionária estrangeira se torna um caso internacional.
Dia a dia vigiado
Na nossa casa, as irmãs iam o mínimo possível na cidade, porque ali é um povoado pequeno que todo mundo se conhece e protege as irmãs. Mas quando a irmã vai para a cidade, a mais ou menos 40 km, tem que passar nesse território onde facilmente tem os rebeldes, onde acontecem sequestros, perseguição. Então as irmãs vivem uma liberdade vigiada, mesmo quando recebe visitas. A partir das 17h não se sai mais de casa.
Me lembro a última vez que fui. Ia acompanhar uma irmã brasileira que estava indo morar lá. Como a gente chegou do aeroporto já era quase noite, fomos direto para casa. Passamos nos lugares de blocos de política que controlam quem chega e sai, como num lugar que tem guerra. Passamos, eles olharam o carro e pronto, autorizaram ir para casa. E fomos para casa pensando que no outro dia iríamos na delegacia para anunciar, dar os dados da irmã que chegou. Só que nós fomos na missa cedo, às 6h da manhã, daí 7h estávamos tomando café quando chegou um carro da polícia. Eles falaram que viram que tinha irmã estrangeira, porque ela é branquinha, eu eles pegavam sempre por filipina por causa da cor da pele. Daí eles queriam saber quem era porque iam vigiar.
Às vezes estava tão acostumada com a liberdade que estava indo na igreja ou visitar uma família, falavam: “irmã, é hora de voltar para casa”.
Na lista para serem sequestrados
Uma das nossas irmãs é brasileira, de Londrina, morou na Austrália, é bem branca, era formadora das estudantes. Num período ela frequentava a universidade. E funciona assim, quando a gente vai nos lugares, não pode passar na mesma rua, fazer o mesmo percurso sempre, tem algumas advertências. E como ela ia com certa frequência nessa universidade, começaram a persegui-la, descobriram que ela tinha cidadania australiana e começaram a persegui-la. Ela e um padre espanhol estavam na lista para serem sequestrados. As famílias que a gente conhece nos avisaram.
Tem muitas famílias que são famílias tranquilas, mas que são contratadas, como se fosse um trabalho, para vigiar e dar a notícia. Um dia ela estava na universidade e foram avisar que ela não podia voltar para casa. Ela tinha que ir para o aeroporto e sair da ilha. Mas ela era responsável pelas formandas, então foram com o carro pegar e foi direto para casa. Daí ficou dentro de casa, não saia, montaram guarda com pessoas armadas do lugar mesmo. Ela ficou bastante tempo em casa com as formandas porque ela tinha que terminar o ano. Só que ela quase não ia na cidade. Uma vez ou outra que ela ia e andava sempre com o guarda costa.
Em casa, ela e as formandas dormiam todas vestidas, prontas para fugir se ouvissem algum barulho. Foi mais ou menos um mês que viveram essa situação. No povoado, os homens faziam turno, para vigiar se tinha algum movimento. Se tornou uma situação muito constrangedora.
Comunidades periódicas
Tínhamos uma casa de formação com jovens indianas e filipinas. Vendo essa situação que ela não podia continuar, pois por causa dela estavam em perigo outras jovens também, a gente decidiu que se transferisse todo mundo para a capital. Temos comunidades periódicas lá. Vai uma, vive pouco tempo quando está mais tranquilo, sempre com essa liberdade vigiada.
Formamos um grupo de leigos no lugar, que ficam lá acompanhando as famílias, levando a frente a missão, inclusive tem a nossa casa que é colocada à disposição para os encontros, para tudo. Construímos também um salão polivalente, vai uma médica com alguns enfermeiros da cidade para atender o povo pobre.
As noites não são tranquilas
A gente continua a missão, mas não conseguimos ter uma comunidade estável, as irmãs vão. Eu sei que tem uma irmã nossa agora que está lá. Vai, fica um mês, dois meses. Orientando, vivendo a missão, orientando os leigos que estão, encontrando as famílias. As famílias que a gente ajuda são famílias muito pobres. E você tem que viver uma liberdade controlada, eu mesmo ia com frequência lá, às vezes um pouco para deixar as irmãs mais tranquilas, passava um mês, dois meses com elas, porque minha missão era no norte, mas confesso que a noite não é tranquila. De dia sim, você está em casa, não sai muito, as irmãs, por exemplo, só na região próxima são impedidas de ir nas zonas rurais um pouco mais distante.
Como reconhecer a casa de um cristão
Parece brincadeira, mas a gente reconhece a casa dos cristãos se tem um porquinho no quintal, aí é cristão e também eu aprendi lá que o porco afasta cobra, então diz aqui é casa de cristão. Mas se você vê um cabritinho no quintal, você já sabe que naquela casa mora muçulmano. Eles não comem carne de porco.
Lá nas irmãs tinha um chiqueiro, parece brincadeira, mas elas falavam, que se chegasse gente aqui a primeira coisa que a gente iam fazer era se refugiar no chiqueiro, porque porco afasta, na religião deles, não pode se aproximar.
Pagos para colaborar com os sequestros
Por causa da pobreza da população, alguns muçulmanos, mesmo que não pertençam a grupos rebeldes, são pagos para, por exemplo, fazer espia. E a gente conhece muitas pessoas, famílias, que algum familiar se tornou guardião nos sequestros, não foi quem sequestrou, mas ganhou dinheiro vigiando.
Eu trabalhei em Manila, numa prisão feminina, e a coisa que mais me fazia impressão, que entre as pessoas que estavam detidas tinha um certo número que tinha participado de seqüestro, ou para cuidar, acompanhar, disfarçar. É uma situação não só das Filipinas.
Ataques de bombas em festas religiosas
Outra questão que acontece muito é em período de Quaresma, Semana Santa, como aconteceu no Sri Lanka. É comum nas Filipinas, bombas na porta da igreja, na multidão, sobretudo no período das celebrações. As ameaças eram contínuas. Uma tensão, porque tem multidão, isso acontece nas cidades maiores das Filipinas.
No período em que estive lá, tinha ameaça de bomba na capital. Uma igreja famosa que os cristãos frequentam muito era ameaçada. Essa irmã que era perseguida no sul estava para pegar o visto para ir para a Itália. Ela tinha ido na estação de ônibus para pegar o visto na embaixada num dia, no outro dia jogaram uma bomba lá. Então, já tinha medo do sul e chegou também na capital. Depois eu me acostumei.
Mídia internacional não noticia
Eu fico indignada porque não sai na imprensa mundial. A gente está aqui pensa que lá está tudo tranquilo, enquanto essas coisas são frequentes, entre as notícias são essas a respeito de bombas. O maior medo são as bombas onde tem multidões ou celebrações e a segunda preocupação são os sequestros.
Leitura errada da religião
São países que têm essa situação de perseguição, mas, pessoalmente, a gente sabe que não é questão de religião. Embora tenha uma leitura errada da religião, porque quem mata um cristão ou se faz explodir é mártir, como se fizesse uma coisa boa para Deus na interpretação radical do Corão, que não é exata.
Fé e dedicação
A gente tem lá pessoas humanas, eles também se arriscam pela fé e precisam de assistência. A gente não pode pensar só em salvar a própria vida e certamente, eu digo isso, os missionários que estão lá estão lá por fé e dedicação. É uma missão que realmente comporta riscos. Como na África o maior risco para quem é missionário é a saúde, digo por experiência. Mas se tem todo esse risco, porque estão lá? É o amor de Deus, para servir, para ajuda.
Atendimento religioso e social
Nós temos nesses países não só questão da religião. Eles são pobres que precisam de evangelização, de pastoral, de visita, de consolo, de assistência, mas a pobreza é muito grande, é uma região pobre das Filipinas, não há recursos. Então, atende-se nos dois campos, social e religioso. É muito trabalho. Em certo aspecto até mais o social do que o religioso.
O trabalho social é aberto a todos. Por exemplo, o nosso centro de saúde onde atuam voluntários, médicos da cidade, vem pessoas do povoado, das montanhas em volta, colinas. Ninguém pergunta se é cristão ou não, vem por motivo de saúde e são assistidos. No social é a pessoa.
Perseguição aos cristãos no mundo
Em agosto a Igreja celebrou o dia de oração pelos cristãos perseguidos, no dia 6. <Clique aqui> para saber mais.
Juliana Mastelini Moyses
Pascom Arquidiocesana
Matéria publicada na edição de setembro de 2019 do Jornal da Comunidade (JC), da Arquidiocese de Londrina