No mês em que comemora seus 55 anos de sacerdócio, monsenhor Bernard Carmel Gafá, um dos cinco primeiros padres ordenados em Londrina, conta aos leitores da Revista Comunidade sua história de vida construída juntamente com a história da Arquidiocese de Londrina
Começando pela sua história na Igreja de Londrina, desde quando o senhor está em Londrina? Já era seminarista em Malta? Pode nos contar como veio para cá?
Sempre quis ser padre desde criança. Ia para a igreja com meu pai e sentia dentro de mim aquele desejo de levar a pessoa de Jesus às pessoas onde não o conheciam. E esse desejo foi crescendo. Quando tinha 17 anos entrei para o seminário e comecei o estudo da filosofia. Bem neste ano, 1958, dom Geraldo Fernandes chegou em Malta, ao seminário onde eu estava. E ele nos explicou sobre sua diocese, que fazia apenas um ano que ele era bispo em uma diocese nova, no Norte do Paraná, e nos convidou então, seminaristas, futuros padres para podermos vir ajudá-lo. E foi ali que começou dentro de mim aquela semente, aquela vocação que eu já tinha de ser missionário.Mas precisava terminar aquela primeira fase de estudos, da filosofia ainda em meu país. Quando tinha 21 anos eu vim para Londrina com mais outros quatro seminaristas: Monsenhor José Agius, de Rolândia, outros dois padres já falecidos, e um outro que foi depois para os Estados Unidos.
Viemos para o Brasil sem saber de nada. Nós viemos como Abraão que foi para a Terra Prometida. “Deixa tua família, tua casa e vai aonde eu vou te mostrar”. Eu imaginava que encontraria aqui um lugar como o Amazonas, mas não, era muito melhor. Era Londrina. Claro, era Londrina no começo, no ano de 1961, tudo muito novo. Nós também éramos muito novos, com 21 anos de idade, era aquele entusiasmo, aquela alegria, povo muito acolhedor.Dom Geraldo era muito bom conosco. Assim começamos. Tínhamos que estudar Teologia. Fomos para Curitiba, no Estúdio Teológico dos padres claretianos. Ali passamos os quatro anos da teologia. Nas férias vínhamos para Londrina. Eu passava minhas férias de dezembro, janeiro e depois em julho na cidade de Santa Fé, perto de Astorga. Cada um de nós, os cinco seminaristas, ficávamos em uma paróquia. E assim vivíamos junto com aqueles párocos até chegar o grande dia em que fomos ordenados sacerdotes. Nossa ordenação foi na Catedral de Londrina, no dia 4 de julho de 1965. Quero dizer que nestes dias estou completando 55 anos de ordenação sacerdotal. Como passou rápido esse tempo!
Quantos anos tinha a diocese quando o senhor chegou aqui?
Depois de ordenado padre, Dom Geraldo me colocou aqui na Paróquia Imaculada Conceição. Claro que naquele tempo tinham poucos padres e também poucas paróquias. Londrina contava mais ou menos 150 mil habitantes, mas havia muito movimento, aos domingos tínhamos cinco missas. Eu e um padre japonês, que cuidava da comunidade japonesa, morávamos juntos. Durante todos os dias da semana tínhamos uma missa de manhã e outra à noite. Na Imaculada Conceição realizávamos também muitos casamentos, porque era uma igreja pequena, muito apropriada para essas festas. Eu me lembro de um mês de janeiro no qual fiz 55 casamentos. Num sábado só eu cheguei a fazer 12 casamentos. Tínhamos também muitos batizados, muita vida de paróquia. Tínhamos o grupo de jovens, as senhoras do Apostolado, os Vicentinos. Era muito gostoso, uma vida muito ativa. E assim também a cidade de Londrina, o Norte do Paraná, começaram a crescer. Aliás, é importante saber que Londrina se tornou diocese em 1957 e logo depois Maringá também.
O que levou ou promoveu a elevação de Londrina de Diocese para uma Arquidiocese? Houve algum tipo de ciúmes de Jacarezinho, que era mais antiga?
Antes todo o Norte do Paraná pertencia à diocese de Jacarezinho. Não tinha outra diocese. Então veio Londrina e Maringá, logo depois foi Campo Mourão e assim foi crescendo. E veio a necessidade de Londrina se tornar Arquidiocese, abrangendo também as dioceses de Jacarezinho, Apucarana, Cornélio Procópio e Londrina. Quatro dioceses numa Arquidiocese. Não se estranhava o fato de Jacarezinho não ter se tornado Arquidiocese, pois ficava um pouco distante aqui do centro do Paraná e também não cresceu tanto como Londrina. Aqui era o norte mesmo, pioneiro, e que prometia muito, e de fato cresceu bastante. Então era razoável que de fato Londrina ficasse como a arquidiocese. E até hoje aqui se cresce bastante e Jacarezinho ficou mais no interior.
Considera a evangelização naquela época mais fácil do que nos tempos atuais?
Não digo que era mais fácil, mas quando se começa a crescer a cidade com os prédios, os problemas, as distâncias… Claro que isso começa a ficar mais difícil. Imagina nos grandes centros, nas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, sem dúvida nenhuma a evangelização fica mais difícil. Então, naquele tempo, o ambiente era mais familiar, mais comunicativo, todo mundo se conhecia, se visitava. Tinha aquele ambiente do interior, que facilitava as relações humanas e também a vivência religiosa. Com o tempo então, claro, as cidades começam a se tornar metrópoles, com muitos outros problemas, de distanciamento, criam-se então outras necessidades, outras dificuldades.
Como era a caminhada da Igreja nesses primeiros anos? Quais foram os principais desafios?
Londrina teve muita sorte quando Dom Geraldo Fernandes foi escolhido como primeiro bispo. Ele era de uma capacidade extraordinária. E deixou uma infraestrutura fortíssima para nossa diocese até hoje. Naquele tempo vieram os vários movimentos, havia o Cursilho, o movimento dos jovens, as senhoras do Apostolado, o Movimento Familiar Cristão, enfim, havia uma movimentação muito boa, muito grande. Acredito que o que fortaleceu a pastoral aqui na Arquidiocese foram de fato os movimentos. A liturgia se enriqueceu com os ministros extraordinários da Eucaristia, que antigamente não tinha.
Passamos também pela a adaptação ao Concílio Vaticano II. Como se sabe, o concílio terminou em 1965 e daí começou a ter as novidades, a participação maior dos leigos na liturgia, a liturgia passou a ser na língua do lugar. Eu mesmo comeceia celebra missas e os outros sacramentos em Latim….Ninguém entedia nada. Depois então com a língua vernácula do povo, nós tínhamos um contato mais direto. A liturgia passou a se tornar mais próxima viva, mais comunicativa, mais participativa e pincipalmente também com o engajamento dos leigos que passaram também a dirigir, a participar ativamente. Antes eram apenas ouvintes, recebiam a mensagem.Houve uma mudança muito grande sim na participação.
Outra coisa muito bonita, e que Dom Albano introduziu,foi o Dia da Palavra, ou a dedicação à Palavra de Deus, à Bíblia Sagrada. Colocar o Evangelho e a Sagrada Escritura nas mãos do povo. Não só pela leitura nas missas, mas pelas reuniões com a leitura da Bíblia, o dia da palavra nos grupos e nas famílias. Então a Palavra de Deus começou a se tornar bem mais participativa. Isso ajudava também na catequese. Quando cheguei aqui a catequese era muito fraca, com apenas um ano de preparação para a primeira Eucaristia. Depois, no tempo de Dom Albano, começou a se organizar, com mais anos de preparação das crianças na catequese.
Estes tempos de pandemia, de isolamento social, reforçaram o papel e a importância das Igrejas Domésticas. Em sua avaliação, isso promoverá um crescimento missionário nas pessoas, nas famílias? Quais os principais desafios?
Este tempo de pandemia realmente é um problema. As Igrejas estão fechadas já faz quase quatro meses, e pelo jeito vai até o fim do ano. Isso dificulta. Se fala das Igrejas domésticas, se fala da participação pelos meios de comunicação social. Muitas paróquias se comunicam ao vivo pelo Dia da Palavra, da missa nos domingos e outras circunstâncias. Mas, como alguém disse recentemente, “Deus não é virtual, o amor não é virtual, a família não é virtual”. Então, sinceramente, acho que vamos sofrer e a recuperação será difícil, gradual e levará tempo até nós retomarmos uma vida ativa, viva, com a força da comunidade que nós tínhamos. Acredito que teremos um trabalho muito grande a ser feito, para refazer tudo das cinzas. Eu digo assim das cinzas porque quando pudermos reabrir nossas igrejas aquelas pessoas da fixa de risco não vão poder participar, terão aquele receio, aquele medo ainda, aquela distância. Vai levar tempo sim, vai levar tempo para que possamos nos sentirmos livres, ter a coragem de voltarmos a construir uma Igreja viva, ativa. Queira Deus que possamos aprender com isso, mas sofreremos também.
Qual a importância de Londrina para sua vida sacerdotal?
Londrina significa tudo, pois se sou sacerdote, há 55 anos, tudo começou aqui em Londrina, quando eu tinha 21 anos de idade e já completei 80 anos. Eu sou londrinense, sou cidadão londrinense, sou comendador do Paraná, sou padre de Londrina, o padre mais antigo de Londrina, além do padre Francisco Schneider, que é mais idoso e mais presente m Londrina. Então, sem dúvida nenhuma, eu vi Londrina crescer e sou parte de Londrina. Londrina é tudo para mim, é muito importante.
Há um trabalho que o senhor goste mais de fazer e que fortaleça sua vocação?
Meu pai sempre dizia que quando Deus gosta de uma pessoa Ele lhe dá oportunidade de fazer o bem. E Deus me deu muitas oportunidades para fazer isso. Uma das coisas boas que eu fiz, especialmente no tempo que estava na Catedral, foi a oportunidade que tive de ajudar as igrejas-irmãs de Londrina. Fui eu que comecei esta ajuda entre as igrejas. Nunca fiz uma lista das ajudas que eu dava, só Deus é que sabe! Mas, sem dúvida nenhuma, tem ao menos seis igrejas que começaram do nada, e hoje são paróquias organizadas que eu ajudei a construir.
Tem uma lista enorme, graças a Deus. Ele me deu esta oportunidade e possibilidade – e o povo participava. Tínhamos condiçõesde fazer este benefício em favor das outras igrejas. Dom Albano gostava tanto desse trabalho que ele determinou às outras paróquias a doação de 1% de suas contribuições para formar um fundo de ajuda paroquial. Dom Albano se inspirou no projeto das Igrejas-Irmãs que comecei e levei adiante. Este fundo se chama Fundo Arquidiocesano de Partilha, e que existe até hoje.
Outro trabalho muito importante é o de ajuda aos pobres. Naquele tempo,eu atendia a muitos pobres. Às vezes os vicentinos acompanhavam para ver a realidade das famílias. Muitas famílias ajudei e também construí muitas casas. Ajudamos ainda à Casa do Bom Samaritano, a creches, ao asilo e outros locais de assistência. Um trabalho muito importante, muito bonito de caridade às pessoas e às entidades de assistência.
Há algum outro assunto ou história que o senhor considere interessante ou importante, por favor,conte-nos.
Quando vim para o Brasil eu trouxe comigo duas imagens de 30 cm. Uma do Sagrado Coração e outra da Imaculada Conceição, feitas na Espanha, muito bonitas. E nesses 55 anos que estou como sacerdote eu só servi a essas duas paróquias: a Imaculada Conceição e a do Sagrado Coração de Jesus. Parece que foi uma providência, uma iluminação divina. Passei 10 anos na Imaculada logo no início da minha vida sacerdotal, depois passei 10 anos no seminário Paulo VI, como professor. De lá fui para a Catedral onde fiquei por 30 anos. E agora voltei para terminar a minha vida aqui de novo, na casa da Mãe, na casa da Imaculada Conceição. Então, esse parece um projeto que Deus tinha para mim. Eu trouxe isto comigo e estou terminando também a cumprir esta missão, com a graça de Deus.
Hoje, completando 55 anos de vida sacerdotal, eu olho para traz erealmente posso ver que foi a mão de Deus que me dirigiu. Alguém me perguntou porque me tornei padre? A resposta é não fui eu que me tornei padre. Foi Jesus, foi Deus que me chamou, foi Deus que me conduziu. Como diz São Paulo de si mesmo: “Deus me chamou e confiou em mim. Deus me chamou, me enviou e confiou em mim”. E graças a Deus, Ele me chamou sim, me enviou e confiou em mim. Espero ter cumprido a minha missão e continuo a cumprir até o dia em que Deus me der vida aqui em Londrina. Dou graças a Deus porque tive realmente uma vida muito bonita, muitas graças, criei muita amizade, muita gente amiga e, realmente, tenho uma família muito grande. Como Jesus diz “quem deixa a própria família recebe cem vezes mais”. Isso eu posso dizer aqui, quantos amigos eu tenho por toda Londrina, graças a Deus. Isso só por causa da minha vocação sacerdotal. Termino dizendo como Maria: “Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta em Deus meu salvador. Porque ele fez em mim maravilhas, santo é o seu nome”. Obrigado, Senhor!
Célia Guerra
Pascom Arquidiocesana
Entrevista publicada na edição de julho da Revista Comunidade – número 362