O documento do Dicastério para a Doutrina da Fé “Dignitas infinita” exigiu cinco anos de trabalho e inclui o magistério papal da última década: da guerra à pobreza, da violência contra os migrantes à cometida contra as mulheres, do aborto à maternidade sub-rogada e à eutanásia, da teoria do gênero à violência digital

Três capítulos oferecem os fundamentos para as afirmações contidas no quarto, dedicado a “algumas graves violações da dignidade humana”: é a declaração “Dignitas infinita” do Dicastério para a Doutrina da Fé, um documento que faz memória dos 75 anos da Declaração universal dos direitos do homem e reafirma «a imprescindibilidade do conceito de dignidade da pessoa humana ao interno da antropologia cristã» (Introdução). A principal novidade do documento, fruto de um trabalho que durou cinco anos, é a inclusão de alguns temas principais do recente magistério pontifício que acompanham aqueles bioéticos. No elenco “não exaustivo” que é oferecido, entre as violações da dignidade humana, ao lado do aborto, da eutanásia e da maternidade sub-rogada, aparecem a guerra, o drama da pobreza e dos migrantes, o tráfico de seres humanos. O novo texto contribui assim para superar a dicotomia existente entre quem se concentra de modo exclusivo na defesa da vida do nascituro ou do moribundo, esquecendo muitos outros atentados contra a dignidade humana e, vice-versa, quem se concentra somente na defesa dos pobres e dos migrantes, esquecendo que a vida deve ser defendida desde a concepção até a sua natural conclusão.

Princípios fundamentais

Nas primeiras três partes da declaração, são evocados os princípios fundamentais. «A Igreja, à luz da Revelação, reafirma de modo absoluto» a «dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida em Cristo Jesus» (1). Uma «dignidade inalienável» que corresponde «à natureza humana, para além de qualquer mudança cultural (6) e é «um dom recebido» e, portanto, está presente «por exemplo, em uma criança ainda não nascida, em uma pessoa em estado de inconsciência, em um idoso em agonia» (9). «A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição de vida ou das suas qualidades» (17) e o faz com base na revelação bíblica: mulheres e homens são criados à imagem de Deus; Cristo, encarnando-se «confirmou a dignidade do corpo e da alma» (19), e ressuscitando nos revelou que «o aspecto mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à comunhão com Deus» (20).

Dignidade de cada pessoa

O documento evidencia o equívoco representado pela posição daqueles que à expressão “dignidade humana” preferem “dignidade pessoal”, «porque entendem como pessoa somente “um ser capaz de raciocinar”». Consequentemente, afirmam que «não teria dignidade pessoal a criança ainda não-nascida, nem o idoso não autossuficiente, nem o portador de deficiência mental. A Igreja, ao contrário, insiste no fato que a dignidade de cada pessoa humana, porque é intrínseca, permanece para além de toda circunstância» (24). Além disso, se afirma «o conceito de dignidade humana foi às vezes usado de modo abusivo também para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos… como se fosse devido garantir a expressão e a realização de toda preferência individual ou desejo subjetivo» (25).

O elenco das violações

A declaração apresenta então o elenco de “algumas graves violações da dignidade humana”, ou seja «tudo aquilo que é contrário à vida mesma, como toda espécie de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o suicídio voluntário»; mas também tudo aquilo que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, as torturas infligidas ao corpo e à mente, as constrições psicológicas». Enfim, «tudo aquilo que ofende a dignidade humana, como as condições de vida sub-humana, os encarceramentos arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens, ou ainda as ignominiosas condições de trabalho com as quais os trabalhadores são tratados como simples instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis». Cita-se também a pena de morte, que «viola a dignidade inalienável de toda pessoa humana para além de toda circunstância» (34).

Pobreza, guerra e tráfico de pessoas

Antes de tudo, se fala do «drama da pobreza», «uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo» (36). Depois está a guerra, «tragédia que nega a dignidade humana» e «é sempre uma “derrota da humanidade”» (38), a ponto de hoje ser «muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível “guerra justa”» (39). Prossegue-se com o “sofrimento dos migrantes”, cuja «vida é colocada em risco porque não têm mais os meios para formar uma família, para trabalhar ou para nutrir-se» (40). O documento se detém depois no “tráfico de pessoas”, que está assumindo «dimensões trágicas» e é definida como «uma atividade indigna, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas», convidando «exploradores e clientes» a fazer um sério exame de consciência (41). Do mesmo modo, se convida a lutar contra fenômenos como «comércio de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de crianças, trabalho escravizado, incluída a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e crime internacional organizado» (42). Cita-se ainda “o abuso sexual”, que deixa «profundas cicatrizes no coração daquele que o sofre»: trata-se de «sofrimentos que podem durar toda a vida e a que nenhum arrependimento pode remediar» (43). O texto continua com a discriminação das mulheres e a violência contra elas, citando entre essas últimas «a constrição ao aborto, que fere seja a mãe que o filho, tão frequente para satisfazer o egoísmo dos homens» e «a prática da poligamia» (45). Condena-se o “feminicídio” (46).

Aborto e Maternidade sub-rogada

Firme, depois, é a condenação ao aborto: «entre todos os delitos que o homem pode cometer contra a vida, o aborto procurado apresenta características que o tornam particularmente grave e deplorável» e se recorda que a «defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano» (47). Forte também é a contrariedade à maternidade sub-rogada, «através da qual a criança, imensamente digna, torna-se mero objeto», uma prática «que lesa gravemente a dignidade da mulher e do filho… que se funda sobre a exploração de uma situação de necessidade material da mãe. Uma criança é sempre um dom e nunca objeto de um contrato». (48) Na lista são citados ainda a eutanásia e o suicídio assistido, confusamente definidos por algumas leis como «morte digna», recordando que o «o sofrimento não faz perder ao doente aquela dignidade que lhe é própria de modo intrínseco e inalienável» (51). Fala-se, portanto, da importância dos cuidados paliativos e para evitar «toda obsessão terapêutica ou intervenções desproporcionais», reiterando que «a vida é um direito, não a morte, a qual precisa ser acolhida, não aplicada» (52). Entre as graves violações da dignidade humana, encontra lugar também o “descarte” das pessoas com deficiência (53).

Teoria de gênero

Depois de reiterar que em relação às pessoas homossexuais deve ser evitada «“toda marca de injusta discriminação” e particularmente toda forma de agressão e violência», denunciando «como contrário à dignidade humana» o fato de que em alguns lugares pessoas «são encarceradas, torturadas e até mesmo privadas da vida unicamente pela sua orientação sexual.» (55), o documento critica a teoria de gênero, «que é perigosíssima porque cancela as diferenças na pretensão de tornar todos iguais» (56). A Igreja recorda que «a vida humana, em todos os seus componentes, físicos e espirituais, é um dom de Deus, que se deve acolher com gratidão e colocar a serviço do bem. Querer dispor de si, como prescreve a teoria de gênero… não significa outra coisa senão ceder à antiquíssima tentação do homem que se faz Deus» (57). A teoria do gênero quer «negar a maior das diferenças possíveis entre os seres viventes: a diferença sexual» (58). Portanto, «devem-se rejeitar todas aquelas tentativas de obscurecer a referência à insuprimível diferença sexual entre homem e mulher» (59). Negativo também o juízo sobre a mudança de sexo, que «arrisca a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção. Isto não significa excluir a possibilidade que uma pessoa portadora de anomalias dos genitais, já evidentes desde o nascimento ou que se manifestem sucessivamente, possa decidir-se por receber assistência médica com o fim de resolver tais anomalias» (60).

Violência digital

O elenco se completa com a “violência digital”, e cita as «novas formas de violência se difundem através das redes sociais, por exemplo o cyberbullying» e a «difusão da pornografia e de exploração das pessoas para fins sexuais ou através dos jogos de azar» na rede (61). A declaração se encerra exortando «a colocar o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de toda circunstância, ao centro dos esforços pelo bem comum e de todo ordenamento jurídico» (64).

Andrea Tornielli
Vatican News

Foto: Vatican Media

Vatican News publica o texto integral divulgado este sábado (06/10) pela Sala de Imprensa da Santa Sé acerca do caso envolvendo o estadunidense Theodore McCarrick.

 

Cidade do Vaticano

Depois da publicação das acusações acerca da conduta do Arcebispo Theodore Edgar McCarrick, o Papa Francisco, consciente e preocupado com o turbamento que as mesmas estão causando na consciência dos fiéis, pediu que fosse comunicado o seguinte:

Em setembro de 2017, a Arquidiocese de Nova Iorque sinalizou à Santa Sé que um homem acusava o então Cardeal McCarrick de ter abusado dele nos anos 70. O Santo Padre dispôs a respeito uma investigação prévia aprofundada, que foi realizada pela Arquidiocese de Nova Iorque e na conclusão da qual a relativa documentação foi transmitida à Congregação para a Doutrina da Fé. Enquanto isso, diante do fato que no decorrer da investigação emergiram graves indícios, o Santo Padre aceitou a renúncia do Arcebispo McCarrick do Colégio cardinalício, ordenando-lhe a proibição do exercício do ministério público e a obrigação de conduzir uma vida de oração e penitência. A Santa Sé não deixará, no tempo devido, de divulgar as conclusões do caso que envolve o Arcebispo McCarrick. Também em referência a outras acusações feitas contra o eclesiástico, o Santo Padre dispôs integrar as informações levantadas através da investigação prévia com um ulterior estudo detalhado de toda a documentação presente nos Arquivos dos Dicastérios e Escritórios da Santa Sé acerca do então Cardeal McCarrick, com a finalidade de apurar todos os fatos relevantes, situando-os em seu contexto histórico e avaliando-os com objetividade. A Santa Sé está consciente de que do exame dos fatos e das circunstâncias poderiam emergir escolhas que não seriam coerentes com a linha atual para tais questões. Todavia, como disse o Papa Francisco, «seguiremos o caminho da verdade, onde quer que nos possa levar» (Filadélfia, 27 de setembro de 2015). Seja os abusos, seja seu acobertamento, não podem mais ser tolerados e um tratamento diferenciado para os Bispos que os cometeram ou os acobertaram representa, de fato, uma forma de clericalismo não mais aceitável. O Santo Padre Francisco renova o premente convite a unir as forças para combater a grave chaga dos abusos dentro e fora da Igreja e para prevenir que esses crimes sejam novamente perpetrados contra os mais inocentes e os mais vulneráveis da sociedade. Ele, como anunciado, convocou os presentes das Conferências Episcopais de todo o mundo para o próximo mês de fevereiro, enquanto ressoam ainda as palavras de sua recente Carta ao Povo de Deus: « a única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas vidas é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus. Essa consciência de nos sentirmos parte de um povo e de uma história comum nos permitirá reconhecer nossos pecados e erros do passado com uma abertura penitencial capaz de se deixar renovar a partir de dentro» (20 agosto 2018).